O PEQUENO COLECIONADOR 2023
"O tempo é uma criança que brinca,
movendo as pedras do jogo para lá e para cá,
governo de criança"
Heráclito de Éfaso, ~ 540 - 450 a.C.
"Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino"
Caetano Veloso, Força Estranha, 1979
O Pequeno Colecionador chega a sua 5a edição com uma mostra que reúne obras brincantes realizadas por 17 convidados. A exposição que acontece anualmente busca, mais uma vez, trazer artistas contemporâneos e público para o território da infância.
O Pequeno Colecionador, 5a edição, 30.9 — 21.10.2023, Carbono Galeria, São Paulo (fotos Erika Mayumi)
Refletir sobre a infância é refletir sobre o tempo. Aquele tempo que se passa até hoje, desde o nosso nascimento, e o tempo que vive em outro tempo, se considerarmos o brincar. O tempo do brincar é despreocupado, sem objetivo final ou hora certa para acabar. É diferente do tempo cronológico, que pode ser medido. O momento da brincadeira é antagônico ao tempo linear, contínuo e progressivo; assemelha-se à escultura de Rodrigo Sassi, Jogo das 13 peças e muitos lados, que gira sobre o seu próprio eixo, ou ao pião Desde o fim até o começo, de Gustavo Prado, espiralar, sem direção ou sentido, um tempo mítico, eterno, infinito...
É um tempo que permite a transformação, condição primeira de constituição da vida. Nita Monteiro traz essa reflexão em seu livro-objeto, no qual borda em tecido a evolução do homem desde os seus primórdios. A obra intitulada A(s) serpente(s) da vida evidencia o animal presente em mitos de criação do mundo inteiro. A serpente cósmica, extraterrestre, navega pelos lagos, abre rios e sacode a terra, acordando todos os seres vivos do planeta.
A passagem do tempo se destaca em Relicário dos dentinhos, de Paula Juchem, uma espécie de santuário para guardar dentes de leite. Um local propício para receber a visita de fadas ou outros seres mágicos que habitam o imaginário da infância: algo sagrado que acende o desejo dos adultos de tornar permanente um determinado período, uma forma de guardar as suas crianças para sempre pequenininhas.
Em Nascente, de Felipe Cohen, o tempo corre entre o dia e a noite a partir de peças de um quebra-cabeça tridimensional. Nesta obra, a lua se esconde atrás do sol (e vice-versa).
No trabalho de Janaina Wagner, a lua também se esconde, porém, de outra forma. Por sua vez, Dentro das pedras existem luas propõe um mistério a ser desvendado: com a ajuda de um pequeno martelo, a destruição da rocha azul o revelará. Muitos outros segredos, no entanto, continuam encobertos em Mundo perdido: pequeno sítio arqueológico, de Zá Szpigel, que reúne dezenas de objetos que podem ser encontrados debaixo da terra. O ato de escavar, remover camadas, permite que encontremos muitos mundos escondidos, vividos e imaginários, que revelam histórias e acessam pretéritos que se fazem presentes.
Zá Szpigel
Mundo perdido: pequeno sítio arqueológico, 2023
6 canaletas de madeira 50 × 15 × 1 cm, 12 estacas, 7 ferramentas (rodo, pá, rastelo, cisel, martelo, vassoura e lupa), objetos diversos de medidas variáveis (panelinhas de cerâmica, colheres de madeira, sementes, pedras, chave e castiçal de metal, talismã de cerâmica etc.)
edição 30 + 4 PA
Memórias também emergem em Sob o dossel da infância, de Karola Braga. O cheiro das frutas que exalam de seus gizes de cera nos leva a sonhar em deter o tempo e se perder na doçura das árvores frutíferas, como fazia a artista quando criança.
Em meio à vegetação, encontramos os Pássaros da memória, de Ulysses Boscolo. Os passarinhos xilogravados sobre tacos de cumarú são reunidos em duplas para formar o jogo.
Outros jogos integram a exposição, como o quebra-cabeça Cangaço, de J. Cunha, e Caio-não caio, de Caio Marcolini, que desafia os participantes a tirarem as varetas, uma a uma, até que não sobre nenhuma bolinha sobre elas. Perde quem deixar a última bola cair! A falta de controle pode incomodar quem joga, mas, afinal, não seria este um reflexo do que acontece diariamente durante toda a nossa vida? A imprevisibilidade das coisas refletida na brincadeira. O tempo vivido não garante o acesso ao futuro. Só nos resta continuar.
Observamos nos objetos desenhantes Risco, de Michel Groisman e Giropop, de Carlos Bevilacqua essa mesma noção. O primeiro foi pensado para ser jogado em dupla: duas pessoas, simultaneamente, fazendo, com uma só caneta, o mesmo desenho. Impossível controlar o que o outro vai querer riscar no papel, muito menos prever o resultado. O segundo requer paciência, pois a bolinha desgovernada movida pelo motor deverá passear pelo pó de giz, formando um desenho também inesperado.
A brincadeira se repete no girar do pião de grafite em Objetos de desenhar, de Fabia Schnoor; e, de forma simbólica, com Casulo, de Mauro Piva, por meio do qual o artista procura provar que a beleza da borboleta está presente em todo o seu ciclo, e não somente no resultado final do seu vir a ser e voar. Estamos acostumados a enxergar o belo nas asas do inseto, mas será que a beleza não está presente em todo o processo de o bicho se transformar? É exatamente isso, a experiência de não se saber ao certo quando aquele casulo irá eclodir, qual cor e formato terá aquele ser quando sair dali, o elemento que gera a surpresa que dá um gosto especial para a vida.
A inconstância e contínua transformação caracterizam também os trabalhos de Lia Chaia e Mariana Gonçalves. Em Corpo Paisagem, Chaia decompõe uma paisagem de folhas diversas que dão corpo a um personagem e podem ser recombinadas de formas variadas. A mutação da natureza ocorre de maneira similar com Terreninos, no qual 10 peças de tecido são unidas por velcro, configurando terrenos variados, diferentes cenários e vegetações.
A constante modificação da natureza é impressa na paisagem e em nosso corpo, no nosso processo de vir a ser e crescer, em nossa contínua e inexorável transformação, condição de nossa existência no mundo. Heráclito dizia que homem nenhum pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois o fluxo, no passar de um segundo, nos apresenta novas águas, e no rápido desenrolar do tempo, também já não somos mais os mesmos. Algo de novo acontece a todo momento, mas aquele frescor da experiência primeira, tão frequente quando somos crianças, aos poucos, no decorrer da vida, vai se perdendo...
Essa exposição busca resgatar este sentimento, seja na surpresa e na descoberta do artista em seu processo de criação da obra, seja na experiência do espectador que com ela brinca. Temos aqui uma chance de elevar o caráter lúdico da necessidade humana de recriar formas e estruturas, modificar a matéria e enxergar o mundo como um grande jogo, uma brincadeira, uma obra aberta de múltiplos e infinitos caminhos — por onde possam correr os meninos da música de Caetano Veloso — ainda a serem conhecidos ou inventados. Quem sabe assim seja possível aceitar a passagem do tempo com mais alegria, sempre lembrando que, segundo o filósofo, "o tempo é uma criança que brinca”.